Wetenção Criativa.
À sombra da cagadeira.
E pronto, cá estou eu, fechada entre quatro paredes, muito agradáveis por sinal, cinza claras até dois terços do pé-direito, loiças de Valadares (talvez - não me apetece lá entrar para verificar), uma sanita e um bidé, e ainda elegantes acessórios em metal. Dois rolos de papel higiénico, um quase gasto, outro ainda no suporte. Fico feliz só por saber que aqui o céu não me cai na cabeça. E porque esta casa de banho está limpa...o chão tem pegadas, e há umas manchas de ferrugem na parte metálica do revestimento das paredes. A porta não abre. Mais dez minutos a rodar a chave em vão e faço bolhas nos dedos de tanto rodar a porcaria da chave que parece deslizar mas nunca engatar na treta do trinco. Treta. Droga. Chatice! Calma. Nem sequer tenho um telemóvel para mandar uma mensagem. Vim mesmo desprevenida. Também posso bater na parede, e chamar alto...mas não me apetece mesmo nada inaugurar o escândalo. Hesito em chamar o pessoal, mas vai ter de ser. É que esta é uma experiência quase limite, mas só quase porque até é gira. E eles chegam aos magotes, os meus colegas de trabalho, munidos de sugestões e empurrões na porta. Estão a ser uns queridos e eu até fico toda babada com tanta atenção. Sei que estão todos entusiasmados com a quebra da rotina. "Só a Silvia para lhe acontecer isto". É. Só eu. Riem e empurram a porta, apagam-me a luz, e experimentam outras chaves..."Acendam-me a luz!"...E não conseguem mesmo abrir a primeira porta...porra, fiz mesmo um belo serviço. Sento-me e penso. Não tenho mais nada para fazer, e o cérebro começa a brotar ideias. Tento recordar-me de todos os episódios de MacGuyver a que assisti na adolescência e tenho a certeza de que ele conseguiria sair daqui. Não tem uma única janela, só mesmo um respirador fraquinho. Está abafado aqui dentro. Talvez devesse dormir para não gastar o oxigénio todo...Lá de fora, o pessoal já desistiu de tentar abrir a porta, o patrão chamou o serralheiro e, de vez em quando vem certificar-se de que ainda respiro. E respiro. Não tenho razões para não ficar calma. Um dia eu saio daqui... um dia, quiçá, talvez à noite.
Mas não deixa de ser um espaço agradável, bem desenhado. A importância da arquitectura e dos pormenores contribui imensamente para alguma dignidade desta situação. A ficar presa numa casa de banho, a da agência não é a pior de todas. Reparo nas juntas dos azulejos e do chão. Na solução da iluminação e do lastro negro em torno do respirador. Tá sujo. Volto a olhar para a porta com a expressão de cientista em busca de uma revelação eurékica. Tiro um gancho do cabelo - vi isto em imensos filmes - e começo a usá-lo para escarafunchar a fechadura. À falta de um cartão de crédito é assim que se faz...Eu sei, eu vi. No fundo, até me divirto com isto. Começo a tirar os parafusos do puxador, mas o puxador não tem nada a ver, além de que funciona na perfeição...é a parte trancada de baixo que tem um enorme trinco atravessado. Fechei-me com duas voltas e ainda por cima fechei a porta da entrada para o lavatório... estou trancada, não uma, mas duas vezes. Sempre achei se alguma coisa vale a pena fazer, então há-que fazê-la convictamente.
Deviam ser umas cinco e meia quando esta minha aventura começou. Disse à Sandra que ia fazer uma coisa que ninguém podia fazer por mim. E ela adivinhou o que era. Mas agora já não ouço quase ninguém lá fora. Já deve passar das seis e o pessoal começa a ir embora. Alguém se despede de mim, batendo na parede e dizendo "Até Quarta, Sílvia!" Subitamente a Silvia mora aqui. Olho em volta e procuro uma solução. Tenho dois desodorizantes ambientes e mais uma daquelas arvorezinhas cretinas pendurada numa das ferragens da porta e que já deve estar ali há uns anos. Se esta virasse a minha casa, aquela seria a minha árvore de Natal.
Ontem mesmo, o pessoal da capoeira mudou o meu apelido para Pingo Encravado (há mais sobre esta história mas jamais será revelado), e não é que a coisa pegou? Hoje a Pingo ficou encravada na casa de banho...Precisava de uma caneta. Vim mesmo à casa de banho completamente despreparada. Nem uma caneta, nem sequer para escrever SILVIA ESTEVE AQUI, nem um bloquinho, nem sequer um talão de multibanco para olhar, um rádio para ouvir, uma revista...e costuma haver revistas aqui, mas não, hoje não... Tá-se bem...A sensação é a mesma de quando se desliga a televisão. O cérebro começa a pensar e os sentidos apuram-se. Ouço a vizinha de cima a ir à casa de banho, os saltos dos sapatos para trás e para a frente, ouço música lá fora, a água a correr nos canos... pergunto-me que horas serão, que dia é...em que ano estamos. Aqui está abafado. A ventilação é mesmo fraquinha. Preocupo-me em reduzir o consumo de oxigénio, e penso naqueles mergulhadores que ficaram horas à deriva no mar à espera de serem salvos. Haja paciência. Ao menos aqui está sequinho....Se eu tiver de passar a noite aqui, qual seria a melhor posição?... Hmm. Isto dava uma grande história para o telejornal da TVI: "Retiro Criativo Quase Termina em Desgraça" ou "Redactora Criativa Barricada em Casa de Banho de Agência de Publicidade Reclama Abertura de Portas", ou "Criatividade Fechada a Sete Chaves em Agência do Porto". Tou com sono. E começo a ficar impaciente. Ando de um lado para o outro, mas só consigo dar dois passos em cada direcção. Isto é mesmo pequenino. Sinto que podia até fazer algum exercício, plantar uma bananeira, mas não há espaço e sempre podia cair e quebrar o pescoço...aí sim abriria o jornal da TVI. Encosto-me à parede e olho os azulejos seguindo as linhas de perspectiva que não vão até ao tecto. Imagino os trolhas que assentaram isto. Fizeram um belo trabalho, sim, sim. Se arrombarem a porta, onde é que me arrumo? Sento-me no bidé para não ficar sentada na sanita. Com o tampo fechado a sanita é mais confortável. Até me apetece "ir à casa de banho", mas não posso. Aqui não. Aqui é onde eu moro. Finalmente compreendo os porquinhos (sim, os suinos, mesmo) que não fazem as necessidades no sítio onde comem ou vivem. Aqui é igual, apesar de não haver uma frincha por onde se pudesse passar uma bolacha inteira. "Tirem-me daqui!", desabafo entediada, mas ninguém me ouve, e ainda bem, porque tenho de me manter calma e paciente. Tenho de os ajudar a ajudarem-me, senão eles passam-se. É impressionante. Estou mesmo fechada aqui dentro e não tenho como sair. Será que é assim que se sentem os prisioneiros de guerra?...o cenário de selva asiática passa-me pela cabeça. Escura, húmida, cheia de tailandeses esquisitos e eu desaparecida em combate...Ai, tenho que me entreter com alguma coisa. Penso em desfazer os ambientadores e usar o plástico para conseguir concretizar a fuga...mas detesto aquele cheiro intenso nas mãos. Preciso de outra solução. Olho para as torneiras, canos...será que posso desmontar alguma coisa ou é melhor ficar quieta? Volto à carga com o meu ganchinho maravilha e penso que deveria aprender a estroncar portas só para me preparar para situações destas. Reparo que o buraco da fechadura tem um anel de protecção (uma coisa puramente estética) que se eu conseguisse remover me daria acesso aos parafusos. Depois era só tirar os parafusos e remover o canhão...não faço ideia se os pressupostos estão correctos e se o plano brilha de todo. Mas tento. Tenho escrúpulos em arranhar a pintura da porta, até porque mais cedo ou mais tarde, me vão tirar daqui. Eu é que me quero armar em heroína porque não tenho mais nada que fazer. Desta vez é que vai for. E faço força para que seja, mas o gancho parte-se e corta-me a mão. Agora sangro...aaahhhh. Drama! Luzes! Acção!...TVI? Água a correr no bidé... Já passou...acho que não vou precisar de pontos. À minha frente, um rolo de papel higiénico começa a tornar-se mais interessante que um ovo kinder. Vou fazer bonequinhos. Enrolo duas ou três folhas e faço uma palmeira. molho a base...gosto de ver a água a correr no bidé...que engraçado, faz bolhinhas. Na Austrália, a água escorre no sentido inverso. Não posso molhar demais senão desfaz-se. Agora faço uma barbatana de tubarão. A minha ilha fica no tampo do cesto dos papéis. Já tenho dois barquinhos, mas até era fixe se eu construisse uma jangada...O meu chefe vem mais uma vez verificar como estou e informa-me que o serralheiro, chamado talvez há mais de uma hora, já vem a caminho. Está na autoestrada. Este papel é muito fraco e deixa imensos resíduos nas mãos. Também não deve ser grande coisa até para aquilo que foi concebido. Ouço a porta da agência a abrir-se. Pena. Acho que não vou ter tempo para acabar isto. Pego em dois parafusos que tirei do puxador da porta e coloco-os sob a imitação de um jornal dobrado, a fazerem de perninhas. Pronto. aquilo sou eu, à sombra da bananeira, numa ilha deserta à espera de salvamento.
Tá-se bem. E agora ouço as vozes do patrão e do serralheiro a perguntarem-se quantas voltas tinha dado à chave. Duas. E porquê que fechou as duas portas? Porque guardo bem os meus tesouros. Depois começa o berbequim a esburacar a porta, e finalmente os passos do outro lado desta porta...nem acredito. Ah, o velho truque do cartão de crédito, neste caso uma fita de plástico verde (desconfio que seja um pedaço de garrafa de Frisumo...é só tecnologia de ponta!), mas não é o trinco do puxador que não abre, senhor, é mesmo o trinco da chave. Não resulta. O técnico especializado em sistemas de segurança e retenção de espaços desliza então uma faca de mesa, enferrujada e com restos de cola, por debaixo da porta, e grita para mim: "Agarre na língua! Com a faca! Agarre na língua!"
Huh?! A minha mãe não deixa.
Eu, de faca na mão e com o patrão do outro lado da porta, com um profissional a tentar libertar-me e ao fim deste tempo todo, esforço-me por não fazer piadas. Agarro na língua do trinco enquanto trinco a (minha) língua para não dizer um disparate (não resisti). Ele manda que eu agarre na língua (termo técnico, conhecido entre os meros mortais que ficam presos na casa de banho como o trinco da fechadura) com a ponta da faca e a force para o lado. Com absoluto respeito pela integridade da madeira, sigo as instruções e facilmente abro a porta. Mas é só isto que é preciso? Tinham sido necessárias duas horas e meia para que me fizessem chegar os meios para eu eu própria me libertasse!? Oh pá! Eu sou muito à frente. Sinto-me orgulhosa de mim mesma. Libertei-me QUASE sem ajuda. Agora já sei. Sempre que precisar de ir à casa de banho, levo uma faca de cozinha para agarrar a língua. E vou lá abaixo ao café.
2 Comments:
Belo trabalho, Sílvia.
Duas portas, duas, é de facto um belo serviço. :P
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