quinta-feira, maio 03, 2007

Meio Post sobre Lisboa

Ando a dever ao SSF um post sobre Lisboa. Pois andas, diz o Carlos. Pois ando, ando, concedo eu. :)
Ontem não trouxe o carro. Depois do treino de capoeira, arrastei-me derreada para casa. Vim de Metro pela linha azul, a única que tem os meus bancos favoritos, triplos, aqueles em que nos sentamos de lado... Costumo esquecer-me de sair nos Restauradores e depois dou por mim na Baixa-Chiado a encolher os ombros e a dar a volta para apanhar a linha verde de volta para o Martim Moniz, ou então não, e considero a possibilidade de regressar a pé. É de noite e a preguiça ou, tão sómente, o cansaço condicionam a fragilidade da escolha. Mas ontem não aconteceu. Saí nos Restauradores e vim devagarinho para casa. Seriam umas dez da noite. Atravessei o Largo de São Domingos e depois aquela ruinha estreita com as sapatarias baratuchas e os restaurantes duvidosos.
Há um ano atrás, eu estaria assustada. Há um ano atrás, o meu passo seria acelerado e a minha percepção dos movimentos atrás de mim seria tão ou mais afiada que a visão do fundo da rua à minha frente, e que ia dar à famigerada Praça do Martim Moniz. Há um ano atrás, o brilho das luzes contribuiria para a escuridão que me assustava. Hoje seduz-me. Hoje gosto de andar por ali, a qualquer hora do dia ou da noite. Gosto dali. Dos negros tribais que, de dia, se abrigam à sombra da única árvore que ali existe, que apanham o sol escasso que aqui brilha, que esperam por um angariador de mão-de-obra precária, e que à noite são substituídos por alfacinhas rústicos e turistas embriagados de ginginha. E os paquistaneses do donner kebab, na esquina. Gosto destas pessoas, da profusão de vidas que ali se cruzam: o Hotel Mundial, no Martim Moniz, e os seus turistas pouco esclarecidos; os desalojados que já não dormem ao relento entre os arbustos do jardim (onde estarão?); os drogados abastecidos que passam com o passo acelerado, as prostitutas novinhas e tão bonitas, meninas de cabelos compridos e sotaques espanholados, e que agora aderiram à moda das calças brancas que lhes salientam os rabiosques e os fios dentais, e os amigos delas, chulos ou não, mas que as olham com carinho e protecção quando conversam animadamente com elas, enquanto não chega... trabalho. Deixei-me do trajecto estratégico de seguir junto às paragens de autocarro. Agora vou bem junto ao jardim, sempre perdida em pensamentos e conversas comigo mesma, enquanto me cruzo com um ou outro drogado, ou dois indianos que conversam em hindi. E sinto-me a chegar a casa. As arcadas por baixo do Centro Comercial Mouraria já não me repugnam. Como já não há quem ali durma ao relento, o cheiro a mijo também já não se sente... muito. Os polícias são novinhos e muito giros, e eu acho-lhes um piadão. Os táxis ali é que sempre foram a minha segurança.
Nunca gostei muito da luz amarela da noite, e cada vez mais acho que a Almirante Reis merecia um arranjinho. Aquela gente que ali se encontra na churrascaria que tem um restaurante indiano lá dentro e um balcão de donner kebab logo à entrada, merece a mesma qualidade de espaço urbano que o resto de Lisboa.
Ontem não foi dia de comprar um donner kebab ali à entrada da Almirante Reis, onde o senhor indiano me serve sempre bem, e o rapazinho que me chega o ice tea green se derrete todo com o meu sorriso e jeito delicado, sabendo, contudo, que, para além do balcão, uma civilização inteira nos separa. Tenho carinho por esta gente de longe, mesmo. Identifico-me porque também não sou daqui, mas tenho a vida facilitada porque sou daqui. Eles trabalham muito e devolvem-nos na exacta mesma medida o respeito e consideração com que os tratarmos. Meto-me antes pelo Bem Formoso. Se fosse de dia, perder-me-ia nas lojas. Mas como é de noite, a rua é desafiantemente misteriosa. E sigo devagarinho, com os sacos que me entortam as costas, por uma outra rua acima. A rua é mesmo muito íngreme, por isso, ou se faz devagarinho e a escolher bem onde se põe o pé para que o esforço seja menor, ou se faz quase de gatas. Mas devagarinho vai-se com tempo, como as velhinhas, e com tempo ouvem-se as músicas de bollywood e sentem-se os aromas dos jantares de uma e outra casa. E apetece ir ainda mais devagarinho. Há muita vida aqui. Dou por mim a pensar que, se morasse num bloco de apartamentos todo moderno e com acabamentos de luxo e video-porteiro, acesso directo às garagens e aspiração central, nunca sentiria estes cheiros, muito menos veria sequer os meus vizinhos. E subo. Lá em cima fica o Miradouro da Senhora do Monte, e eu fico mesmo a meio da montanha.

15 Comments:

Blogger exactamente said...

Bonito.

quinta-feira, 03 maio, 2007  
Blogger Piquinota said...

Fizeste-me percorrer as ruas com o pensamento, com a imaginação!

Obrigada!


Jinhos

quinta-feira, 03 maio, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Espero um dia superar os meus medos e preconceitos e percorrer as ruas da mesma maneira...

quinta-feira, 03 maio, 2007  
Blogger mariannegreen said...

Gostei muito de ler a tua Lx.

quinta-feira, 03 maio, 2007  
Blogger ups said...

Carai! So tu para me fazeres querer morar em Lisboa!

quinta-feira, 03 maio, 2007  
Blogger Bxana said...

Permite-me que eu te diga que a tua Lx é a verdadeira... para o bem e para o mal.

Nos tempos de faculdade corri essas ruas quase todas, ia com o meu tio às compras nas lojas do indianos... entrar no centro comercial do MM e não ouvir uma palavra em português... e não ter medo disso!

Tu consegues vê-la melhor que muitos lisboetas que eu conheço. Parabéns.

sexta-feira, 04 maio, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Já tinha saudades de um post assim.

20 valores

prof da margemsul

sexta-feira, 04 maio, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Parabens pelo post. Lindo, axo k captaste a essencia de Lisboa. Bate aos pontos qualquer texto de guia turistico.
Bjs

sexta-feira, 04 maio, 2007  
Blogger 1entre1000's said...

obrigada por me deixares fazer esse percurso contigo!

sexta-feira, 04 maio, 2007  
Blogger Cromossoma X said...

É por este e por posts como este que cá venho sempre sempre...

domingo, 06 maio, 2007  
Blogger S. said...

Obrigada eu por não desistirem deste bloguito... :)
(fico sem jeito...ehehe)

domingo, 06 maio, 2007  
Blogger francisco carvalho said...

Há muito que não sentia saudades de Lisboa...


Gostei muito, mesmo se dizer apenas isto é dizer pouco do muito que gostei.

beijinhos

segunda-feira, 07 maio, 2007  
Blogger Filipe Gil said...

Fiquei vontade de ir comer indiano contigo. lembras-te, ainda pensava em loiro...se calhar ainda penso, mas menos

quinta-feira, 10 maio, 2007  
Blogger S. said...

Comer um indiano comigo? Posso escolher o indiano ao menos? Ou pode ser loiro com olhos castanhos, não me importo, apesar de ser algo parcial ao tipico moreno portugues (olhos verdes é um plus).
;)

sexta-feira, 11 maio, 2007  
Blogger Paulo Dias said...

então e o resto? sei que não me conheces, sou um lisboeta que adora a sua cidade e que se derrete sempre que um portuense fala assim dela..admiração mútua, lisboa e porto são duas cidades especiais, diferentes e belas cada uma à sua maneira. É bom saber que ainda existem pessoas que vêm as coisas com os olhos abertos.

segunda-feira, 28 maio, 2007  

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