Ontem foi um dia mesmo, mesmo, mesmo à Sílvia. Na verdade, as origens deste dia radicam nos idos de Janeiro, em que confiando no conselho irresponsável de um rebelde urbano, deixei o meu carro estacionado, dia e meio, em território da EMEL. Pois, claro está, os senhores multaram-me. Pois, claro está, o rebelde pega na multa e deita-a fora "porque podia ter sido o vento". Pois, claro está, nunca mais me lembrei disso.
Cinco meses depois, no presente, portanto, mas nem tanto porque foi há umas duas semanas atrás, os senhores da EMEL localizaram a minha morada na Invicta e enviaram para lá a dita, registada e com aviso de recepção. A minha mãe, honrada cidadã deste país, ofereceu-se para ir levantar a cartinha, convencida de que era coisa importante. Para tal, cedi-lhe o meu BI. Diligente, a senhora minha mãe, enviou-me no próprio dia, o documento em Correio Azul, para a agência.
Duas semanas depois, apesar do meu chaganço diário à paciência ao
recepcionista/secretário/escriturário-e-tudo-e-tudo-e-tudo, este continuava a jurar a a pés juntos que a carta não tinha chegado e que nada tinha visto.
Permitam-me apenas uma incursão no futuro de apenas alguns dias, para acrescentar que na próxima semana me vou ausentar deste quadradinho luso e que, para tal, precisarei do BI para viajar. Sem mais adiamentos, decidi considerar o BI extraviado e tratar de tirar um novo.
E eis que chegamos ao momento presente que também não o é porque já foi ontem.
O dia começou bem. Os senhores das obras não tinham ainda ligado as retroescavadoras e o silêncio ainda reinava entre as janelas do meu quarto. Ou era dia santo, ou ainda não eram oito da manhã. Consegui dormir mais um bocadinho, apenas para acordar sobressaltada porque já estava a atrasada e a burocracia vinga-se quando a fazemos esperar.
Saí de casa e dirigi-me ao Metro. Tinha decidido que não levaria o carro para não ter de o estacionar. Pois que cheguei ao metro e pois que o passe não funcionou. Aqui há uns dias - flashback muito rápido - parti o cartão de plástico, mas num acto de solidariedade, só pode, o chip intacto recusava-se a funcionar. Fui à bilheteira, preenchi aquele que seria apenas o primeiro impresso do dia, e acabei a pagar 6 euros por um novo passe. Foi para aquecer.
Martim Moniz -> Areeiro -> Sitio onde se tiram os Bilhetes de Identidade:
- Extraviado? Certidão de nascimento. Não tem? Fontes Pereira de Melo Sete.
- Onde, desculpe?
- Picoas. Fontes Pereira de Melo Sete.
Antes que a senhora sofresse uma contratura dos músculos da face, voltei para de onde tinha saído. Meti-me no metro e Areeiro -> Campo Grande -> Picoas -> Fontes Pereira de Melo Sete.
O segurança deu-me a escolher a Conservatória que eu preferisse, já que não era daqui. Benesses, é o que é. Escolhi uma que estivesse vazia. Fui dar à 5ª. Quando lá cheguei, estava uma senhora de Leste, bem posta, educadíssima, com pose de que devia ser formada, mestrada, doutorada até, mas que como tem sotaque de empregada de limpeza ucraniana, estava a reclamar ter sido tratada como tal. Tinha ali solicitado e pago uma certidão, e tinha tido a audácia de perguntar quando estaria pronta. As funcionárias do "Serviço" responderam-lhe à altura das suas competências: "Não sei. Aqui ninguém sabe".
Augurei uma experiência difícil para mim também.
Tirei a senha e esperei. Eu seria a próxima vítima.
Quando me sorriram, eu sorri de volta e disse ao que vinha.
- A menina é de onde?
- Vila Nova de Gaia
- Isso é onde?
- Gaia. Distrito do Porto.
- Ai, Porto é muito complicado. Tem cinco conservatórias...- diz uma funcionária, ao que a outra responde: - Tem, mas eles ao fim de um ano mandam tudo para a Conservatória Central... Onde é que a menina nasceu?
- Vila Nova de Gaia.
- Isso é Porto?
- É Gaia.
- Se é Gaia, não é Porto.
- Pois...
- Deixe ver... Vila Nova de... Paiva...
(por momentos, receei que me fosse dizer que Vila Nova de Gaia não constava)
- Aaah... Gaia tem duas Conservatórias... A Primeira e a Segunda. E agora? A menina está em qual?
- Pois não sei.
- Mas tem de saber.
- E como é que eu posso saber isso? Aqui na Conservatória de Lisboa não têm forma de aceder a essa informação? Uma base de dados? Ou podiam telefonar para lá e tentar apurar, não?
- Não. Aqui não podemos fazer telefonemas para lado nenhum.
- Não podem telefonar para outras Conservatórias?
- Não. Aqui está tudo racionalizado ao máximo. Até o papel higiénico é comprado nem se sabe como...
- Ah bom. Então como é que eu vou saber em que conservatória fui registada?
- Tem que lá ir.
- A Gaia...!?
- Ou pode telefonar. Tem aqui uma lista... todas as Conservatórias têm esta lista (e mostra-me orgulhosa uma pasta de micas com uma listagem números de telefone)... e se quiser tirar o número...
- Porque vocês não podem fazer a chamada...
- Não. Isso era o que a outra queria. Que ligássemos lá para a terra dela a saber quando vem o papel.
- Olhe, eu não tenho tempo para isto. Dê-me o número que eu ligo.
Liguei para a primeira e descobri que só poderia estar registada na segunda. Podia ter confiado na exclusão de partes, mas mesmo assim, investi uma segunda chamada para confirmar que os meus ricos paizinhos me haviam registado numa das duas conservatórias de Gaia. Aproveitei para explicar a situação e preparar a senhora de Gaia para enviar o fax com o documento que já havia encontrado e que tinha em mãos. Resposta da funcionária:
- Com certeza, menina. As colegas que enviem o pedido que eu vou já enviar isto.
Passei a informação às funcionárias de Lisboa, preenchi um papel, paguei €14,5, e o fax seguiu.
Passaram-se dez minutos e nada. Chegavam outros faxes, mas o meu... nada.
- Não quer ir tomar um cafézinho? É que ninguém sabe quando vai chegar...
- A sua colega de Gaia disse que não demoraria.
- Pronto... Como queira.
Estava a demorar muito. Liguei para Gaia outra vez.
- Mas eu já enviei, menina. Enviei assim que chegou o fax daí. Olhe até lhe digo para que número é que enviei. Foi o XXXXXXXXX89.
Não tomei nota, mas perguntei à funcionária (nunca era mesma, porque enquanto uma ia lanchar a outra tinha de sair para o almoço) que verificasse o fax que terminava em não-sei-quê-89.
- Não é 89. É 39. Deve estar a chegar.
Mais dez minutos.
Era impossível. Alguma coisa tinha de estar errada. A senhora de Gaia dissera-me que acabara de o enviar, e eu não senti que me estivesse a enganar.
Liguei de novo para Gaia.
- Vai-me desculpar, Dona Emília - sim, a empatia foi imediata e já nos tratávamos pelo nome - mas não chegou nada...
- Olhe, pois não. Recebi aqui o aviso que o fax não existe... mas é o número que aparece no fax que chegou daí, 21 XXXXXX89.
Desta vez escrevi.
As senhoras de Lisboa não reconheceram o número.
- Isso é impossível. Esse número não existe aqui. Todos os números aqui na Conservatória começam por XXXX, por isso...
- Estou a dizer-lhe que a colega de Gaia respondeu ao número que vai no cabeçalho do vosso fax.
- Nós recebemos muitos faxes e nunca acontece nada disso.
- Compreendo, mas compreenda também que o vosso aparelho de fax tem um número de origem memorizado que, obviamente, não corresponde ao do Serviço e que, para evitar problemas destes, vocês devem corrigi-lo.
- Mas esse número não existe e aqui ninguém sabe de onde apareceu esse número.
- Agora sabem. E ficam informadas de que a situação está a ocorrer. Seria melhor evitá-la, digo eu.
Liguei de novo para Gaia.
- Dona Emilia, vou-lhe pedir o especial favor de me repetir o envio, mas para o número que lhe vou dar, pode ser?
- Com certeza, menina, diga lá.
- 21 XXXXXXX
- Vou enviar agora mesmo.
Desliguei e confiei que desta vez seria sem espinhas.
Mais cinco minutos. Dez. Impossível. Isto era fax, não correio.
- Vai-me desculpar, minha senhora, mas o fax tem papel?
- Oh...! Vou já, já, por papel.
Não, eu ainda não estava a fumegar. Não sorria, mas disfarçava bem porque já só ria deste circo.
Depois, vi-a carregar num botão. Temi que apagasse a memória do fax ou lá o que fosse. Como nunca se pode ser cautelosa que chegue, voltei a ligar para Gaia, desfiz-me em desculpas, expliquei o sucedido, e pedi à colega que, pela terceira vez, repetisse o envio.
Um minuto de pois, a minha certidão emergiu da boca do fax. Respirei fundo.
- Tem o papel?, pergunta-me a funcionária.
- Que papel?
- O talão que dei quando fez o pedido.
Eu sabia lá onde andava o raio do papel. Eu não tinha saído dali o tempo todo. Aquela certidão era minha e isso ninguém o podia negar
- É que, senão, não lhe posso entregar a certidão. Precisamos de agrafar aqui ao processo.
...Medo!!! Não me atrevi a imaginar o que seria ter de arranjar uma solução de recurso, tivesse o raio do papel desaparecido.
- Aqui tem o seu papel.
- Ah, muito bem. A sua certidão, Sílvia. - o sorriso era de quem estava mesmo contente com o serviço prestado.
Surreal. Avancemos.
- Bom dia e muito obrigada.
Saí dali a sentir que deveria reinvindicar uma manhã de trabalho ao serviço do Estado. Não interessa. O que interessa é ir tirar o BI.
Picoas -> Campo Grande -> Areeiro -> Sitio onde se tiram os Bilhetes de Identidade.
Primeiro passo: Tirar a senha.
Cinquenta pessoas à minha frente. Puz-me na fila dos impressos. A mesma senhora da cara contrita.
- Era para substituir o BI extraviado.
- Tem a certidão de nascimento?
- Tenho. Mas preciso do BI com urgência.
- Isso depois as colegas lá dentro informam dos prazos. 13 euros (acho, já nem me lembro)
Fui lá para dentro e preenchi os impressos. Chegou a minha vez. Felizmente, desta vez, a funcionária era amabilíssima, inteligente e competente. Uau.
- Olá Sílvia.
- (ena!) Olá... Eu precisava do BI com urgência, por favor. Vou viajar. Quando é que estará pronto?
- Hoje mesmo, a partir das cinco.
- (ena) Ena!
- Mas tem de ir aos impressos e comprar o impresso de Urgência, e depois volta aqui directamente.
Mais uns quantos euros e um impresso com um recibo agrafado depois:
- Assina aqui, por favor.
(assino)
- O dedo agora...
O dedinho pinta aqui, pinta acoli.
- Tem as fotos?
- Estas.
- Não servem.
- Não servem!?
- São em papel, e como a laminação é térmica, não aguentam. Tem de ser em papel fotográfico. Vai ali ao lado tirar fotos e vem aqui directamente depois.
Vou poupar-vos os pormenores de tirar as fotos na casa ao lado, em estúdio digital improvisado e em que a senhora teve de tirar cinco-fotografias-cinco porque a minha expressão era de tal descrédito que eu não conseguia disfarçar.
Cinco sorrisinhos amarelos depois, volto ao balcão do BI com seis fotos horríveis em papel fotográfico e seis euros a menos.
- Temos aqui um problema...
- Um problema...?
- É um problema mais ou menos... a assinatura não está igual. A terminação é diferente.
- Pois, isso é sempre...
- Mas aqui não pode ser.
- Vá, outra vez.
Assinei outra vez.
- Pronto, vai ter que dar. Mas vá ali aos Impressos outra vez e compre o impresso (XPTO).
- Mas eu já não tenho mais dinheiro!! Posso pagar com multibanco?
- Não. Mas são só €0.55.
- Ainda tenho. ok...
Em troca dos cinquenta e cinco cêntimos nem impresso recebi. Só mesmo o recibo.
- Leve só isto.
Levo.
Entreguei.
- Está tudo?
- Agora é só este impresso... e pode levantar a partir das 17h.
- Obrigada
E adeus.
Almocei lambarices e apanhei um táxi para a agência. Merecia.
Quando cheguei à agência já passava das três da tarde.
- Sílvia...
- Sou.
- Pega para ti. Tava na mesa da (Administradora) há mais de uma semana.
Um doce a quem adivinhar o que continha o envelope de Correio Azul que a DC acabava de me entregar....
Isso mesmo.
Isso.
Pois.
Quarenta euros tarde demais. #$Ø≈###"@!!!!
E com uma multa da EMEL de €30 para pagar.
AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!
Mais #$Ø≈###" e @#$Ø≈###"@!!!!
E depois trabalhei até às dez da noite, e depois fui jantar e ainda tive de me explicar a um amigo meu, berrar um bocado e tal, e depois cheguei a casa e tinha a casa cheia de gente que não conheço. Felizmente, por esta altura, já era hoje.