Tenho uma relação paranormal com o meu boguinhas. É verdade, e data do tempo em que ainda não era meu, mas pertencia à minha mãe.
Lisboa não tem sido meiga para o bogas, na exacta mesma medida em que conto as horas que passo com um pressentimento marado e as noites em que durmo mesmo mal.
Às vezes, estaciono bem o boguinhas. Em sítio seguro, legal, perto da polícia e com iluminação q.b. Outras vez, isso é simplesmente impossível.
Numa e noutra situação, há alturas em que me preocupo e alturas em que o bogas fica estacionado uma semana e nada mais recai sobre ele senão repetidas cagadas de pomba e muito, muito pó. Sempre que me preocupo, algo acontece. Geralmente com o espelho retrovisor.
Um dia, ainda no Porto, estava a minha mãe de férias, e eu usei o carro dela ir para tratar de uns assuntos. Na altura, já eu ficava em casa do meu namorado. Nessa noite, estacionei o bogas (ainda) da minha mãe num parque de estacionamento, perto da casa de família, local seguro e vigiado. Nessa noite, ouvi muitas sirenes, ouvi corridas de mota na rua, ouvi barulhos iguais ao de outras noites, mas que eram mais inquietantes que em outras noites. De manhã, fui ver. Tinha o retrovisor pendurado.
Noutra ocasião, já cá em Lisboa, deixei o bogas estacionado, durante quase uma semana, numa rua de que nunca gostei muito, mas que, na altura, era a única onde havia lugares. Estive quatro dias no Porto. Quando voltei, tinham-me arranhado o carro de uma ponta à outra (daqueles riscos feitos à navalha) e quebrado um chuvente.
Quando estaciono o carro na rua paralela à minha, durmo em sobressalto. Foi assim na noite em que o carro do lixo decepou o meu bogas. A agressão aconteceu a meio da noite (não dei por nada), mas fui acordada às sete da manhã, pelo carro dos bombeiros que não conseguia passar. O meu carro estava estacionado à direita da via de sentido único. Do outro lado, estava um jipe. Mas como fui eu que respondi às buzinadelas, e como era o meu carro cujas peças estavam espalhadas pelo chão, fui crucificada logo ali. O retrovisor estava feito em picadinho, e o carro cheio de arranhões verdes.
Também houve o episódio do arroz de caril, com que alguém se lembrou de alimentar os gatos em cima do meu carro (tive direito ao tupperware e tudo!), e que ficou tão ressequido, mas tão ressequido, que duas lavagens automáticas não conseguiram arrancar os bagos todos.
No outro dia, estacionei o carro na Graça. Estava mau tempo. Ali perto, havia um andaime. Preocupei-me que alguma coisa pudesse cair em cima do carro, mas, mais uma vez, não havia grande alternativa. Não fui em paz. Quando voltei no dia seguinte, descobri que me devia ter preocupado, sim, mas com os gatunos que me tentaram roubar o retrovisor. Não saiu, mas ficou pendurado.
No domingo passado, à noite, estacionei o meu carro na Graça e , sim, perto dos trilhos do eléctrico. Foi no exacto mesmo sítio de onde me haviam rebocado o carro há um mês atrás. Ok, foi no exacto mesmo sítio menos 10 cruciais centímetros que fazem a diferença entre o eléctrico passar e não passar. Mais uma vez, o retrovisor estava todo desconjuntado, pendurado e o espelho fora gentilmente deixado em cima do pára-brisas.
Durante o resto da noite de domingo, toda a segunda feira e terça de manhã, os eléctricos tinham passado sem grande transtorno (um deles mandou abaixo com o retrovisor, mas não deve ter sido o primeiro porque o espelho não aguentaria 2 dias em cima do pára-brisas sem alguém o roubar).
Contudo, assim que chego ao carro, hoje, um eléctrico encosta-se à traseira do carro e o guarda-freio decide que não passa. Fala-me com maus modos, diz que não passa, mas antes de proferir a palavra "RE-BO-QUE", já eu tinha retirado o bogas e me dirigia à garagem para remontar o mesmo retrovisor de sempre.
O carro não estava mal estacionado. Estavam lá dois agentes da PSP que nem se incomodaram com a cena. Deviam ter visto quilos de eléctricos passar ali toda a manhã.
Hoje tirei o passe combinado da Carris e Metro.
Acho que vou recambiar o carrinho de volta para o Porto.
Ter carro em Lisboa cansa-me a beleza e esvazia-me a carteira.
Estou farta.