A minha mãe sempre trabalhou no sector da Saúde. No sector público da Saúde. Uma das coisas que eu mais gostava era ouvi-la falar sobre os seus dias de trabalho na "secção", ou no Centro de Saúde, ou fosse onde fosse. Ficava sempre impressionada com a facilidade com que ela se movimentava no Centro de Saúde onde me levava quando eu ficava doente, e onde ela conhecia toda a gente, que tratava por "colega". Conseguíamos os papéis mais depressa e eu tinha de cumprimentar um monte senhoras de meia idade que me elogiavam os olhinhos verdes tristonhos e raiados da febre.
Nunca gostei da lógica de meter cunhas, fosse onde fosse. Mas minha mãe fazia o que podia pelas colegas e amigas que precisavam de um contacto, de uma informação ou da agilização de um qualquer processo. Ela compreendia o quão importante um pequeno gesto pode ser para uma pessoa em crise. Ela sabia o quão calmante era "conhecer alguém" que pudesse ajudar.
O destino determinou que eu acabasse por trabalhar num Hospital. Estive lá um ano e meio. Pela função que ocupava - era responsável pelo Gabinete de Comunicação e Relações Públicas - tornei-me conhecida de boa parte do pessoal do Hospital. Relacionava-me transversalmente com todos os escalões profissionais, desde o Conselho de Administração (que foram quatro no período que lá estive), aos médicos, enfermeiros, técnicos, administrativos e auxiliares, seguranças, empregados de limpeza, contratados ou de outsourcing que fossem. Era uma família muitíssimo alargada.
Para mim, eram todos públicos-alvo com os quais eu tinha de conseguir comunicar, motivar e cuja colaboração me seria sempre imprescindível. Enquanto pessoas, eu não distinguia o "senhor doutor" da "menina do bar". O meu sorriso era igual para todos e quando me tratavam por "doutora", eu respondia sempre que "doutores são os médicos e o meu nome é Sílvia". Fiz amigos, cativei alguma simpatia, e sei que o meu jeito descontraído é capaz de ter chocado algumas sensibilidades mais formalistas.
Posso afirmar que gostei francamente de lá ter trabalhado. Apesar de ter uma estratégia global para a instituição, nunca cheguei a concretizar realmente nenhum grande objectivo (Comunicação numa instituição pública é o tipo de coisa que só gera despesa, já que o retorno em termos da imagem da instituição é inquantificável). Ainda assim, lá somei pequeninas vitórias, umas aqui, outras ali, quase sempre a nível pontual ou sectorial, mas mesmo só aquelas que não implicavam investimento financeiro por parte da Instituição.
Fiz o que pude por quem pude, mas nunca salvei a vida de ninguém...
Quase três anos depois, regresso ao hospital, mas desta vez para acompanhar um familiar doente. O pessoal do hospital cumprimenta-me nos corredores como se eu de lá nunca tivesse saído. Volto a sentir o carinho e a simpatia dos antigos colegas e a repetir a média de 20 "bom dias" e "olás" por cada 100 metros de corredor percorrido.
Volto a dar por mim a indicar o elevador aos utentes, a abrir portas a senhoras idosas ou meninas de bebé ao colo, a olhar para os papéis que os utentes têm nas mãos e indicar-lhes onde têm de se dirigir.
Agora sou eu que conduzo a minha mãe e o meu avô pelos meandros do hospital, sentindo que eles se sentem mais calmos e menos assustados porque eu "conheço" muitos "alguéns" no hospital, porque eu sei o caminho, e porque quase todos os funcionários com quem contacto se lembram de mim e me tratam por "colega".
Sempre tentei respeitar os direitos de quem de espera ser atendido, mas reconheço que tem sido muito importante os conhecimentos que tenho no Hospital, de modo a agilizar o processo de que depende a saúde e a qualidade de vida do meu avô. Todos os (ex)colegas têm sido incansáveis naquilo que podem fazer, têm sido sensíveis e têm sido disponíveis para ajudar. No entanto, sei que essa atitude não radica apenas no conhecimento pessoal que têm de mim.
O pessoal de Saúde, diga-se o que se disser e com todos os erros e falhas que são impossíveis de evitar num sistema tão complexo como é o hospitalar, vive num estado permanente de "missão". Eles trabalham para ajudar, e fazem-no o melhor que podem. Eu própria, quando lá trabalhava, tinha como missão promover uma boa imagem da instituição, facilitar os canais de comunicação entre diversos estratos profissionais e institucionais, de modo a ajudar todos os colegas a tornar mais positiva a experiência dos utentes junto dos Centros de Saúde e do Hospital.
Eu tinha um espírito de missão. Eu gostava de fazer a minha niquice que fosse para que os Utentes estivessem melhor informados, para que os profissionais colaborassem melhor entre si, para que o público e a Administração Central percepcionassem o que de bom se fazia naquela instituição.
Eu sinto falta desse espírito de missão, agora.
Nestes dois dias em Lisboa, um amigo meu ficou doente e precisou que o levasse ao Centro de Saúde. Não conheço cá ninguém, mas conheço o sistema, e isso bastou para que pudesse vencer a resistência ao preconceito deste meu amigo em procurar ajuda profissional no sector público. Sem possibilidades para custear acompanhamento privado, a opção dele seria mesmo ficar sem tratamento. Ora isso não poderia ser.
Dei então por mim a aplicar aquilo que observei na minha mãe, das vezes que ia ao CS em criança, e a fazê-lo com a mesma confiança e desenvoltura, com algum conhecimento de causa e jogo de cintura. E foi simples, rápido e positivo, e meu amigo teve acesso aos cuidados de saúde de que necessita sem ter de desembolsar fortunas (que não tem) na medicina privada.
Confesso que é nestas alturas que fico orgulhosa de mim mesma por ter prestado atenção quando devia, mas, acima de tudo, agradeço o exemplo da minha mãe por me ter mostrado, mesmo que inadvertidamente, como se vive.
(este post, além de muito longo, não pretende chegar a lado nenhum. Estou cansada, mal dormida e um bocadinho desgastada, por isso nem me apetece organizar bem o pensamento. Já sei que os comentários vão ser de más experiências com médicos, Centros de Saúde e Hospitais e estarão cobertos de razão e de razões.
Eu só queria ressalvar que é com calma, com boa vontade e sem preconceitos que se consegue comunicar. É a falar que a gente se entende. Porque é muito bom quando se consegue ajudar alguém. Enche-nos o coração e faz-nos ganhar o dia, mesmo que para isso tenhamos de perder alguns minutos a mais a escutar alguém, a dar atenção, a segurar numa mão que treme.
Foda-se, estou passada, mas estou muito agradecida a todos aqueles que me ajudaram e àqueles que me permitiram que os ajudasse também.
Este blog segue dentro de momentos.)