Sábado. Momento de revelação. Tava com com pouca energia, resultado de só me ter levantado pouco antes das 5 da tarde. Fomos para o treino, ginga pra aqui, ginga pra lá, queda de rins, dói-me os braços, estou com sono. Queixada armada duas vezes para cada lado, martelo pulado e parafuso. Tem dias em que voo, hoje não levanto o cú do chão. Pronto, pessoal, vamos jogar. Meia desconcentrada, vou largando os golpes com pouca convicção. Adoro jogar com o professor, mas o meu jogo é mais no chão, quando ele sobe eu corro perigo. Fecho o jogo porque estou cansada, ele não me deixa parar e acerta-me martelos e chapas para eu reagir, ok, felipe, tá bom, vamo lá. Gostei. Entram outros para jogar e eu sento-me na roda a observar. E depois volto a entrar, ainda com pouca convicção, numa de poupar as energias. O professor diz, escutem a música, joguem no ritmo, nem mais rápido nem mais lento. Tudo bem, o ritmo tá bom, mas este fulaninho tá a fim de me acertar, e vem para cima com muita rapidez, eu mantenho o meu ritmo e até canto a música, gingando no compasso, mas ele é todo pressas, todo precipitado, e não me apetece jogar assim e dou a volta o mundo. Ele vai e acerta-me um martelo pelas costas. Muito feio, muito baixo e muito desesperado. Uma regra de cortesia que eu não admito que seja quebrada. Vou no pé do berimbau e recomeço o jogo. "Tu não és o Felipe". Cumprimento e entro pra castigar. Agora não há falhas, o nível é outro, e esqueço-me das reservas, esqueço a amizade e fica só a capoeira. E o pé aproveita todas as oportunidades, sem piedade, sem amizade, só o jogo. Quando ele fica no chão, eu pulo à volta dele, esperando ele se levantar, imaginando que seria fácil meter o pé na cabeça dele, me distraindo na ginga para não ceder à facilidade. Um jogo atento, directo, mas com justiça. O cansaço desapareceu, já nem me lembro que alguma vez existiu. Sinto aquele travo na boca, o fio da navalha, a linha que separa malícia de maldade. Não lhe toco uma vez, apesar de o pé passar sempre rasante. Ele acerta-me um martelo que eu protegi com o braço. Se doeu, não senti. Tás a dar-me mais razões, o bicho já pegou, agora vai morder. O professor levanta-se e compra o jogo. No momento certo.
Não gostei do que fiz, mas devia passar a gostar. Tudo o que fiz estava certo. Ele sabe que sim, a amizade é intocável, mesmo que, na capoeira, a gente se desfaça. Devia estar orgulhosa, mas sinto-me vazia. Mostrei o lado lunar, tal como o mestre tinha avisado. A personalidade de cada um se revela na roda de capoeira. Joguei certinho, mas joguei perigoso. Deixou de ser confortável. O professor diz que só a raiva me desperta e que ele adorou ver esse jogo. Que é assim que tem de acontecer. E que eu tenho de jogar sempre assim, mas sem a raiva. Que tenho de me libertar da comiseração, e jogar solto, só com responsabilidade. Alguém me disse um dia: "Não confunda amizade com capoeira". Entendi.